Tuesday, April 19, 2011


MIGUEL BAGANHA


DESENROLANDO O ESCONDIMENTO



Se é verdade que a arte começa, por vezes, a engendrar novelos de mentira dos quais podemos desenrolar fibras, tintas ou outras matérias, encontrando novas formas, a verdade, porventura é todo um processo em que fazemos e desfazemos coisas em si, o lado conceptual que antecede e projecta nova construção. A fotografia é um excelente meio para trabalhar, durante a investigação sobre o real e o ver, novos objectos expressivos as grandes sínteses do procedimento visual inteiro, que continua a abarcar cada vez mais a problemática da mobilidade visual: clara no cinema, fixa e inclusa num campo particular. Acrescentar em mobilidade visual (quer dizer: aos roteiros existenciais do olhar), vários tipos de lentes, as que trazem os objectos até nós, as grandes angulares, entre acções de aproximação e afastamento, tudo isso, não sendo a paleta do pintor, permite dispor de processos avançados de escolha, apurar ou reinventar os enquadramentos, mostrar ao alcance dos dedos, texturas naturais, nervuras das folhas, estranhos efeitos de distância, toda a paisagem de um horizonte visual salpicado de reflexos, protuberâncias, núcleos de árvores empurradas pelo vento.

Miguel Baganha, fotografia digital
série "Desenrolando o Escondimento" | 2011

Miguel Baganha, explorador da câmara sobretudo pela expressividade de do close-up (e é o caso desta exposição), atravessa lugares meio obstruídos, como na temática destes trabalhos, e rodeia de perto a mercadoria ali guardada, «cilindros» ou rolos e rolos e rolos de mangueiras de vários calibres para transportar líquidos, combustíveis e outras matérias nesse estado, testemunho do engenho humano também na contagem de tantos milhares de metros, imaginemos, para formar alguma rede de distribuição industrial. As fotografias feitas num grande armazém deste tipo de instrumentos, de tubagem não rígida justamente enrolável, cortável à medida certa para cobrir distâncias certas ou estimadas. Os apelos desta aproximação parecem sugerir uma sistemática indagação dos blocos ali depositados em quantidade renovadora dessa matéria aparentemente tão inócua, regida e debitada por máquinas reguladas para determinados tempos de produção, na variedade ponderada pelo comprimento calculado. Aqui temos o pragmatismo da produção, bem como as suas tipologias, e o fotógrafo não se esgueira na relva e sebes de um parque londrino, ao entardecer. Miguel Baganha, muito dado à experimentação, a recolhas inomináveis, foi bem um contador performativo da realidade plástica que emergia dos blocos contados e enrolados, tubos de tubos mais ou menos largos, em função dos diâmetros iniciais, formando «túneis», para embalagens, uns pouco profundos e de curtos calibres, outros em tensão, atados com pontas de sisal, deitados ou de pé.

Miguel Baganha, fotografia digital
série "Desenrolando o Escondimento" | 2011

Esta simples anotação do material abordado é já, de certa maneira, um roteiro de possíveis escolhas, entre contrastes gerados pelas diferenças dos módulos e pela natureza da sua matéria, se pensarmos em borracha, fósseis transfigurados, ou diferentes categorias das naturezas dos elementos transformadores.
Ler estes breves apontamentos dá-nos pistas para os trajectos de Miguel Baganha. Também ele quase não cessou de fazer escolhas, de confrontar ou separar efeitos. Os cilindros ao alto, close-up em volta da parede de tubos mais ou menos largos, certos pormenores de tubos mais largos, curvaturas amputadas, perto, a montante e a jusante. Atrás disso, sobre o espaço negro, como em algumas dimensões ficcionistas do cinema no século XX, alguém sai para o imponderável. A vontade inovadora desta viagem labiríntica, a marcha lenta diante de rolos pequenos, no chão, por vezes em «cilindros» espessos, ao alto, ou ainda como túneis de inquietante grandeza, tudo afinal (e também) à mercê da escolha, belíssimos enquadramentos que rompem a excessiva semelhança daqueles quilómetros de tubos, paisagem onde os tons cinza, em diferentes aglomerações, são por vezes fixados com a marca humaníssima de um nó, em corda fina, a garantir que os imagináveis arcos da espiral se desfaçam em busca da linha recta, da linha de transporte.


Cada fotografia conta para a renovação do espectáculo visual, a sua imobilidade, a sua intransitória maneira de ser. A variedade de um sonho afinal suspenso, cortes, revelações de vazios, enrolamentos pelo chão, em escala, desenrolamentos previsíveis, um caminho para a construção no futuro que a série fotográfica anuncia. Os homens ali estão, escondidos, outros virão desafiar a mobilidade do ver, algures, quando as mãos quadradas desenrolarem os tubos ao longo de valas infinitas
a intemporal e constante invenção do mundo.

Rocha de Sousa

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