" BONECA QUE NÃO SONHA... "















Domingo á noite no meu quarto...

Este meu quarto ás escuras, é como se não tivesse interior, como se não existisse, ou ainda como se não passasse da recordação de um sorriso abstracto.
E o vizinho de cima? É bem provável que tenha vendido a sua guitarra...

" Porque estás á janela nessa posição? "

- Quero vêr de maneira diferente!...

" Que vês afinal? "

- Em princípio AR...

" O ar vê-se? "

- O ar,
É ISTO QUE SE VÊ,
E que parece não se vêr!...
É NOITE,
SOMBRA,
CINZENTO ESCURO...













" A humidade não tarda aí... "

- Mas garanto-te uma coisa:
Virá de qualquer sítio, menos do FUTURO!

" Que vês mais? "

- TEMPO!...

" Tempo?... O tempo também se vê? "

- Apenas ANTE-VÊR...

" Fala-me dele... "

- O tempo acontece algures, e de vez em quando
Ausentar-se-á do pulso das pessoas...
Naturalmente a isto vão chamar EXISTIR.

" Porque motivo? "

- E quase uma irrealidade!...

" Porque falas assim? "

- Há qualquer coisa em perspectiva...















" Em perspectiva? "

- Sim! Pressinto que em certo lugar
Um homem está sozinho de maneira enigmática,
Desprezando o tempo...

" E que tem isso? "

- CALA-TE E OUVE!...
Esse homem, de quando em vez
Recordar-se-á com certeza
Daquilo que tem para fazer...
RECORDAR-SE-Á DO FUTURO.

" Do futuro? "

- Vês? Não entendes...
Passemos á frente...

O cigarro apagado na sua boca, terá de corresponder ao que vier da montra onde se vai encostar...

" E terá ocasião de falar consigo mesmo? "

- Sem dúvida!... As pessoas dirão:
É LOUCO... FALA SOZINHO...

" E o sorriso? "

- O sorriso, apagar-se-lhe-á do rosto,
Como quando o Sol vai e vem...

" O Sol tambem vai e vem? "

- Essa imagem é inteiramente tua, poeta...

" Ele voltará a sorrir? "

- Sim...tal esboço explicará que
Irá murmurar de novo.
Perto dele passará muita gente...

" E as crianças? "

- Essas, num outro lugar
Tornar-se-ão mais pesadas,
Enquanto forem levadas pelos pulsos...

" Deixar-se-ão arrastar? "

- Enquanto olharem para dentro das montras...

" E as mães? "

- As mães, por sua vez resmungarão:
NUNCA MAIS VIRÁS!...
E que importa?
Esses momentos NÃO TERÃO FUTURO,
Serão grandes demais para isso!...

" As crianças, sempre as crianças... "

- Cada uma delas viverá sozinha,
Recostada em sua emoção...

" Por mim, recordarei de novo
Aquela imagem que vi num talho...
Havia um frango anémico, pendurado...

- Sem cabeça...
No toco do pescoço,
O sangue coagulara...

" E em baixo? "

- Em baixo... isto é em cima do balcão
Estava um tabuleiro branco,
Salpicado de sangue...

" Os homens que os vendiam, tal como hoje
Vestiam de branco tingidos de vermelho... "

- Terão sempre um ar de crime!...

" O pescoço do frango
Fez-me recordar o medo... "

- Essa idéia foi direita a ti,
Saindo-lhe da garganta!
É melhor esquecer o passado...

" Porquê? "

- Porque mais tarde, neste instante...

" Neste instante!? "

- Os instantes são sempre os mesmos!...
As situações é que não!...
Mas dizia eu: Neste instante,
E naquela rua,
A coisa deve ser diferente!...

" Espera!... Talvez que no homem do cigarro apagado
Te alegre um próximo futuro... "

- Futuro!?...

" Está bem, passemos á frente. "

- Meio distraído,
Ouvirei o ruído da porta de um carro fechando-se...

" Algo significativo? "

- Compreendo que esta noite se perderá
Dentro de ti...

" Tudo bem...
Pois em compensação esta noite deixa-me feliz,
Só de saber que neste momento
Uma criança dorme em paz... "

- É uma bela imagem!...

" Merece um poema? "

- Eh! Eh! Eh!... Esperavas por isto, poeta...
Pois bem, QUERO OUVI-LO!

" Enquanto dormes,
Na primavera da tua juventude,
Na tua pele macia,
Na tua inocência transparente,
No teu sorriso tranquilo... "

- MUITO BONITO...
Porém, nisso tudo, enquanto dorme,
NÃO HÁ MILAGRE ALGUM...
O seu milagre,
Está na boneca que não pensa,
Que não come,
Que não sonha,
Que não quer,
Que não sofre,
E porque sem outro motivo,
Faz tudo isto
Quando a criança quer...

Pain-Killer